segunda-feira, 12 de março de 2012

Crônica: a arte de perdoar

Nestorino veio de Portugal ainda criança e se apaixonou pela exuberância da natureza

Trabalhou muito a vida toda até, por fim, aposentar-se da Embrapa, onde trabalhava em um centro de pesquisas agropecuárias em São Carlos, duzentos e poucos quilômetros da capital paulista. Lá, criou o hábito de fazer cedinho pela manhã uma boa caminhada de ida e de volta por uma triha no bosque Santa Marta, eram três mil metros que lhe faziam bem para o coração e para o espirito. Deleitava-se contemplando os imensos jequitibás, perobas e copaíbas, os jacarandás que se enchiam de flores violáceas. Às vezes pegava do chão, cascas de canela sassafrás para perfumar a casa onde morava. Assim foi tomando carinho por árvores e pássaros e agora, que podia se dar ao luxo de descansar, dedicava horas cuidando do jardim e especialmente da horta. Cultivava couve portuguesa, para seus caldos verdes, e courgettes, um tipo de abobrinha que, recheada com queijo, ficava uma delicia e lhe fazia lembrar-se da infância em Coimbra.


Mas sua favorita era uma enorme jaqueira que crescera sozinha, na beira do terreno, nos fundos da casa. Com quase vinte metros soltava trinta ou até quarenta grandes frutos usados para fazer um doce disputadíssimo, que lhe rendia uns bons trocados. Porém, um dia notou que alguém pulava o muro atrás dos frutos da jaca-mole e decidiu fazer uma cerca elétrica para preservar sua propriedade. Comprou um kit e a instalou, certo de que isto afugentaria o vivaldino que roubava sua fruta. Uma noite de garoa e silêncio surpreendeu Nestorino com um barulho estranho, um ruído seco vindo do jardim dos fundos, bem perto da jaqueira. Pegou a lanterna e foi conferir. Depois de andar alguns metros o fecho de luz iluminou o corpo estendido de um menino de uns dez ou doze anos. Desesperado tentou reanimá-lo, fez de tudo, massagens, respiração boca a boca, gritou. Em vão, o garoto estava morto, eletrocutado depois de chocar-se com a cerca eletrificada.
Chamou a emergência, que constatou a morte, e levaram o corpo. Ninguém suspeitou a causa do acidente, ninguém imaginou que o Betinho fora eletrocutado pela imperícia ocasionada por uma instalação pífia, mal feita. Ninguém. A não ser Amanda, a irmãzinha dele que vira tudo, mas que apavorada fugira para sua casa, não falando do ocorrido a ninguém, nem a seus pais. Guardou o segredo para sempre, somente ela sabia que apesar de cardíaco, Betinho não tinha morrido de infarto. Ela e Nestorino, que morreu um ano depois cheio de remorsos. Pouco tempo depois a jaqueira foi fulminada por um raio que a atingiu bem no meio carbonizando-a por completo.
Durante anos Amanda pensou que a Justiça Divina tinha sido feita, que Deus tinha castigado com a morte o sitiante português e enviado aquele raio para vingar seu irmão mais velho. Um dia leu: "Então Pedro, aproximando-se, lhe perguntou: Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe respondeu: Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete". Nunca fora uma mulher de fé, religiosa, por assim dizer, mas a frase do Evangelho trouxe a lembrança do fortuito acontecimento que acontecera há tantos anos.
Comprou uma muda de jaqueira de um produtor de frutíferas e com ela foi tocar a campainha da casa do finado Nestorino. O novo morador abriu a porta e surpreso ouviu uma história meio maluca que a irmã de Betinho contou para justificar a vontade insólita de plantar a pequena árvore, exatamente no mesmo local em que a outra vivera. Impunha a condição de fazer isto sozinha dizendo que estava pagando uma promessa. O Homem ofereceu uma pá cavadeira e lá foi Amanda com a jaqueirinha. Antes de plantá-la escreveu algo em um pedaço de papel que enterrou junto com a planta.
No bilhete estava escrito: “Descanse tranquilo, Seu Nestorino, lhe perdoo”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário